quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Tese de mestrado de Ângela Maria Lucas Quintiliano - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP sobre ADOLESCENTES E MÍDIA


 

1. Harry Potter: uma história que .encanta.

Quem é o bruxo adolescente Harry Potter, que fez com que sua criadora, J.K. Rowling,

escrevesse sete livros contando sua saga? Qual o segredo do sucesso dos livros e,

principalmente, dos filmes sobre Harry Potter, que acumulam filas de crianças e

adolescentes que por horas esperam a abertura das livrarias para comprar o lançamento, ou

nos cinemas aguardando mais uma estréia cinematográfica? Que .poder mágico. existe

nesse personagem que fez até um cardeal da magnitude de Ratzinger se manifestar?

Iniciemos pela primeira questão: Quem é Harry Potter? É um bruxo adolescente, órfão, que

estuda em uma escola que o prepara para exercer suas habilidades em seu contexto

específico, .vida de bruxo.. Contudo, ele não é um bruxo qualquer, sua especialidade é

voltada para o Bem, e ele mesmo é um vitorioso em relação a isso, uma vez que escapou

da morte após um ataque praticado pelo representante do Mal, o personagem Lord

Voldemort, que matou seus pais, e cuja missão de Harry é vencê-lo, seja por vingança, ou

propriamente para eliminar o Mal do mundo.

Certamente que apenas o que foi apresentado do enredo principal da história de Harry

Potter não seria suficiente para que, de acordo com a editora Rocco que publica os livros da

série: .Os cinco primeiros volumes criados pela escritora venderam 250 milhões de

exemplares em todo o mundo, 2 milhões só no Brasil, e foram traduzidos para 62 idiomas2..

O número de pessoas, crianças, adolescentes e adultos que assistiram aos quatro filmes já

apresentados no Brasil, com certeza supera em muito os números relativos aos leitores,

uma vez que no cinema a história do jovem mago se torna acessível a um público que não

tem acesso aos livros, o que amplia consideravelmente a aproximação de todos para com

esse personagem.

Qual será a fórmula mágica utilizada por Rowling? Na realidade, como veremos a seguir, a

autora apenas se apropria de um universo que tem ressonância em um público jovem que

utiliza referenciais de sua época para elaborar suas representações simbólicas e, isto, a

partir de um conjunto de representações que longe estão de serem inovadoras.

De acordo com a reportagem publicada na revista mensal Aventuras na História, em sua

edição de novembro de 2005, sob o título Mago Novo, Magias Antigas, a autora teria partido

de uma vasta pesquisa histórica, que inclui conhecimento de mitos e outras representações

simbólicas que acompanham o imaginário de várias sociedades em vários tempos, e através

de uma, digamos assim, bricolage, ela teria transformado esses símbolos criando uma nova

realidade que contextualiza a história de Harry Potter.

Desta forma, os segredos da alquimia, astrologia e cabala que Harry aprende em Hogwart,

escola para bruxos, teria sido inspirada nas práticas difundidas na cidade de Toledo, na

Espanha, onde .se aprendiam as chamadas ciências ocultas e buscavam a pedra filosofal..

Esta aprendizagem, conforme nos diz a reportagem, teria tido como um dos seus mais

ilustres aprendizes o suíço Paracelso (fim do século XV e início do século XVI), conhecido

por nós como um dos fundadores da química e da medicina modernas. Em seu livro

Bruxaria e História: as Práticas Mágicas no Ocidente Cristão, o historiador Carlos Roberto

Figueiredo Nogueira demonstra a importância cultural e social dos magos nesse período,

que inclusive pertenciam à nobreza, e juntamente com as feiticeiras, que embora não

necessariamente pertencessem a essa categoria social, eram respeitadas por seus

conhecimentos do uso das ervas e, portanto, com a cura de doenças e coisas ligadas às

mais variadas superstições. Não há dúvidas de que tanto os magos como as feiticeiras eram

figuras que, em seu contexto, representavam o Bem.

O sentido do Mal com relação aos feitiços aprendidos por Harry, é dado com a introdução de

outro elemento da história: as bruxas, que diferentemente das feiticeiras tem suas origens

na Idade Moderna a partir da intensificação do processo que estrutura concretamente a

Santa Inquisição levado a frente pela Igreja Católica em um contexto de crise que ameaçava

sua hegemonia. As bruxas seriam assim associadas à figura do diabo - elemento que

também é introduzido com mais vigor no mesmo período - por isso, queimadas na fogueira

da Inquisição. Esta visão associada ao Mal teria no século XIX adquirido novos elementos

através das novas formas de esoterismo que surgem acompanhando uma das

transformações provocada pelo processo de secularização que há muito ameaçava a

hegemonia das religiões tradicionais.

No dizer do historiador Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, embora a pesquisa histórica

tenha sido ampla, na verdade o resultado seria: .Harry é um jovem mago, mas usa a

vassoura das bruxas e aprende poções de feiticeiras.. Este é um exemplo daquilo que

denominamos acima de bricolage, onde os vários elementos se interligam e acabam por

produzir um novo resultado.

Além desses elementos apontados, outros ainda produzem o encantamento na construção

da aventura de Harry Potter. Lendas antigas, como a do alquimista Nicolau Flamel do século

XIV; palavras mágicas como .abracadabra., cuja origem segundo o escritor David Colbert

viria do aramaico abhadda kedhabra (.desapareça deste mundo.), usada para curar doenças que em Harry Potter se transforma no maior feitiço do Mal; o uso da mandrágora,planta que foi muito utilizada na Antiguidade por suas propriedades calmantes e

analgésicas, e na Idade Média, para fazer poções do amor; animais simbólicos como os

gatos, ratos, sapos e corujas além de outros de formas fantásticas (centauros, sereias e

dragões, por exemplo) aparecem nas histórias, assim como a transformação de humanos

em animais em condições especificas (animago, no universo criado pela autora), relembram

os mitos que se utilizam não só de animais, como também dessas transformações, como,

por exemplo, Proteu que na mitologia grega se transformava em vários animais.

Não são apenas os elementos mágicos e sobrenaturais que dão sabor as histórias criadas

por Rowling, mas há elementos retirados da psicanálise que podem nos remeter a conceitos

essenciais como os arquétipos de Jung. Neste caso, algumas comparações com heróis tais

como Ulisses, rei Arthur, e até mesmo Luke Skywalder, assim como os caminhos da

.jornada do herói. construídos por Joseph Campbell para descrever o modelo do arquétipo

do herói, são pontuados na reportagem que tenta demonstrar o amálgama entre o velho e o

novo.

Retornemos agora a indagação sobre o .poder mágico. das histórias de Harry Potter que

levaram até a uma manifestação da Igreja Católica na figura do então cardeal Ratzinger. A

manifestação a que nos referimos foi, como dissemos, uma forma de agradecer e

parabenizar a socióloga católica Gabriele Kuby, que em seu livro Harry Potter, o Bem ou o

Mal diz que .as histórias do jovem mago corrompem os corações dos jovens e ferem sua

relação com Deus desde a infância., conforme as palavras transcritas na reportagem em

questão. O cardeal teria lhe enviado uma carta com o seguinte teor: .Obrigado por seu livro

instrutivo. É bom que você esclareça sobre Harry Potter, já que suas sutis seduções têm um

profundo impacto na fé, sem que se perceba, e desagregam o cristianismo em seu

espírito.3. É importante acrescentar que a mensagem de apoio a análise de Kuby não se

restringiu a do cardeal Ratzinger, mas contou com manifestações na mesma linha de crítica

em revistas religiosas como Eclésia (evangélica) e Catolicismo (editada pela organização

Tradição Família e Propriedade).

O que tentaremos demonstrar é como a análise feita pelo então cardeal desvincula-se da

realidade contemporânea, principalmente quando essa realidade se coloca a partir de duas

categorias tão importantes para nosso contexto: a adolescência e a mídia. Também é

importante ressaltar que essa análise, desvinculada da realidade atual, está longe de ser

ingênua, mas se constitui em uma forma de manter hegemonia nas representações

simbólicas no campo religioso.

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