DIOCESE DE SÃO CARLOS - RP 1
ESCOLA DE CATEQUESE
São Carlos, 18 de maio de 2010.
MORAL FUNDAMENTAL
Pe. Ms. Luiz Gonzaga Féchio
Introdução
Quando usamos o termo "moral", geralmente o associamos com "ética". As duas palavras empregam-se na linguagem ordinária como substantivo e como adjetivo. A raiz semântica1 provém do termo grego ethos e de seu correspondente latino mos, que significam caráter, costume, e referem-se à conduta humana. O significado atual de ambos os conceitos parte desta base etimológica2, porém e mais preciso e mais técnico. Moral designa o conjunto de princípios, normas, obrigações, idéias morais de uma sociedade e de época determinada. Ética, por sua vez, indica a reflexão científica sobre o comportamento humano, o estudo sobre o bom e o mau na conduta humana; equivale à filosofia moral. Podemos, então, dizer que a moral refere-se à vida, à práxis, enquanto que a ética, ao saber, à reflexão, à ciência.
Apesar dessas distinções, o parentesco é muito estreito e, às vezes, esses termos são usados indistintamente3.
1. A gênese da moral: a insuficiência do instinto na conduta humana
No mundo irracional, os seres seguem cegamente as leis de sua natureza e de seus instintos e, através dessa obediência, alcançam o seu próprio destino e finalidade. À primeira vista, poderíamos até dizer que eles se encontram muito melhor programados que nós para a consecução de seus objetivos. Seu ordenamento é tão perfeito e adequado que, para agirem bem, só têm que se deixarem levar cegamente pelo dinamismo interno de suas próprias tendências, sem possibilidade de qualquer reparo. Os estímulos ambientais e as possíveis respostas derivadas de sua biologia estabelecem um equilíbrio dinâmico e perfeito. Aí radica a grandeza que tantas vezes admiramos
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1 Semântica é a parte da linguística que estuda o significado das palavras.
2 A palavra etimologia, etymology em inglês, vem do grego étumos (real, verdadeiro) + logos (estudo, descrição, relato) e significa hoje o estudo científico da origem e da história de palavras. Conhecer a evolução do significado de uma palavra desde sua origem significa descobrir seu verdadeiro sentido e conhecê-la de forma mais completa.
3 Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e o mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social. No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Toda a sociedade tende a naturalizar a moral, de maneira a assegurar sua perpetuação através dos tempos. De fato, os costumes são anteriores ao nosso conhecimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, de modo que acabam sendo considerados inquestionáveis e as sociedades tendem a naturalizá-los, isto é, torná-los como fatos naturais existentes por si mesmos. Não só isso. Para assegurar seu aspecto obrigatório que não pode ser transgredido, muitas sociedades tendem a sacralizá-los, ou seja, as religiões os concebem ordenados pelos deuses, na origem dos tempos. Como as próprias palavras indicam, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. A filosofia moral ou a disciplina denominada ética nasce quando se passa a indagar o que são, de onde vêm e o que valem os costumes.
nos complexos mecanismos do mineral, das plantas, e, sobretudo, dos animais. Mas, ao mesmo tempo, isso indica o nível infrarracional no qual se encontram, pois não existe neles nenhum espaço para a liberdade responsável.
O ser humano, ao contrário, é um animal que nasce em um estado de maior fragilidade e indigência. Física e psicologicamente, ele se encontra sem defesas diante dos agentes externos, em uma atitude de dependência radical. Ele carece de uma base comum que o oriente para determinadas tarefas e o impulsione para um modo específico de ser ou comportar-se. Sua evolução e progresso devem ser alcançados através de um processo de aprendizagem. É por isso que ele foi definido como "o animal que segue normas".
Desse modo, o comportamento ético, que exige que atuemos de acordo com certos costumes sociais aceitos pela comunidade, tem uma origem externa. A simples instintividade da criança não é suficiente para regular um comportamento humano. Desde o início da vida se impõe a urgência de uma ascese4, não tanto como um luxo religioso, mas sim como necessidade inevitável para impedir a anarquia do simples capricho. Nas primeiras etapas, essa função cabe aos pais. Trata-se de fazer com que a conduta não se molde em função das necessidades imediatas, aceitando-se a imprescindível renúncia que daí decorre para uma progressiva humanização. O aspecto mais característico da pedagogia humana reside precisamente na submissão a uma satisfação adiada, ou seja, retardada para além de seu chamado imediato. O animal pode satisfazer seus próprios impulsos em um ritmo instintivo, conduta que é ordenada pela teleologia5 especial de cada um. Mas tal regulação não é possível no ser humano.
2. A questão da liberdade na responsabilidade humana
Parece-nos claro que o ser humano experimenta um chamado diante do qual tem que se sentir responsável. Nós somos convidados a um determinado comportamento pelos valores éticos, por um lado, e pelas exigências pessoais, por outro lado ─ tanto as que provêm da situação concreta como as que têm sua origem na vocação peculiar de Deus a cada um. A responsabilidade é justamente a capacidade que a pessoa tem de responder a tais convites. Onde não existe esse poder de resposta, também não é possível a moral. Se a pessoa reagisse e atuasse em função exclusiva de certos determinismos ou estivesse totalmente programado segundo esquemas de comportamento alheios à sua vontade, nos encontraríamos diante de um ser irracional ou diante de um robô humano, que nada teria a ver com a natureza de uma pessoa. O que a pessoa tem de mais peculiar e característico é precisamente o fator da liberdade. Esse tema sempre constituiu motivo de estudo e reflexão ao longo da história.
A moral também não podia deixar de lado tal problema, de modo que todos os textos reservavam um lugar ao seu estudo, constituindo o tratado clássico do ato humano. A análise psicológica e ética do ato humano representavam os dois pontos fundamentais desse estudo: que condições são necessárias para considerá-lo voluntário e como se especifica a sua moralidade. A lei e a consciência não teriam sentido no momento em que o ser humano perdesse ou anulasse sua capacidade de decisão. A vida moral não se fundamenta no "ter que" da coação e da submissão à força, mas no "dever", que nasce e é aceito na livre autodeterminação do próprio destino.
Sem liberdade, haveria realidades que se imporiam, mas nunca valores éticos que obrigariam, porque a natureza mesma da obrigação moral revela a necessidade urgente de ser livre.
A doutrina da liberdade encontrou o seu mais perigoso adversário em qualquer dos muitos tipos de determinismo surgidos na história.
O ser humano é um ser múltipla e profundamente condicionado. São muitos os dados, as experiências, as influências do meio, os interesses, os modelos culturais, as formas de temperamento, as necessidades psicológicas, os impulsos desconhecidos e outros fatores que impedem um absoluto equilíbrio e neutralidade, de modo a não conceder certa vantagem a alguma
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4 Conjunto de exercícios (oração, meditação etc.) que visam ao aperfeiçoamento espiritual.
5 Em Filosofia, é a ciência das causas finais, que se baseia na ideia de finalidade; ciência que admite a existência de uma causa primordial pré-estabelecida de todos os fenômenos, e a tendência deles para um fim necessário.
das opções. Tudo o que é trazido por qualquer tipo de determinismo poderia ser aceito sem nenhum temor ou receio. É verdade que estamos comprometidos com uma realidade "imposta", situados em um contexto do qual não podemos fugir completamente, "dirigidos" por uma série de leis que mantêm sua eficácia e causalidade. E tudo isso em um grau bastante superior ao suspeitado pelo indivíduo normal e comum. Trata-se de fatos experienciais, cientificamente demonstrados. Mas deles também não se pode deduzir logicamente uma simples ética de necessidade, sem outros horizontes além da submissão forçada aos mecanismos cegos.
A existência possui um acentuado caráter dialético entre aquilo que nos foi dado à margem de nossa vontade e o projeto ou meta em direção ao qual dirigimos nossos passos. A liberdade não é um presente gratuito da natureza, mas sim uma conquista que só se alcança através de um grande combate. Ela seria muito mais a capacidade de a pessoa ir superando e se desligando, pouco a pouco, na medida das suas possibilidades, daqueles compromissos e determinismos que não quer aceitar nem considera válidos em função de seu destino.
Trata-se de um confronto violento e paradoxal entre os componentes deterministas e a ânsia de autonomia, que se entrecruzam constantemente em nossa estrutura psicobiológica. É nisso que se baseia o paradoxo radical da liberdade humana. Nós possuímos uma liberdade ─ em parte determinada ─ e um determinismo ─ que, em parte, também é responsável ─, embora a proporção de ambos os elementos seja variável e diferenciada conforme as pessoas concretas ou em função das circunstâncias. Seria preciso estudar em cada caso que zonas se fazem impenetráveis à liberdade e por que, mas esses limites e reduções não exigem sua completa eliminação.
Da mesma forma como não há nenhum argumento definitivo que negue sua existência, também não há nenhum raciocínio filosófico que a imponha com absoluta clareza e de forma convincente, sem a menor dúvida ou vacilação. Assim, apesar das dificuldades, devemos nos inclinar por aquilo que parece mais racional. A insistência permanente nessa peculiaridade específica do ser humano, com as análises e avaliações de todo tipo que já se utilizaram, é o sinal de uma crença comum, defendida como um precioso patrimônio da humanidade quando se descobre o perigo de perdê-la. Justamente hoje, quando se apregoam tanto os direitos da liberdade em todos os campos, parece paradoxal combater a sua possibilidade. Se não fosse livre, o ser humano ficaria despossuído de toda a sua dignidade pessoal; então, o mundo dos direitos e das obrigações, coerentemente, teria que desaparecer da terra. Assim, é preciso defender pelo menos a dose de liberdade que cada pessoa pode alcançar.
3. Função da moral fundamental
As perguntas capitais de toda ética são duas: que havemos de fazer? E por que temos de agir assim? Se em outros tempos o importante foi responder a primeira pergunta, hoje a ênfase cai sobre a segunda. Não se trata simplesmente de conhecer os conteúdos (normas, prescrições, obrigações), e sim de legitimar e fundar racionalmente a validade dos juízos morais. Este é o eixo de todo debate ético. O que preocupa é saber não só como temos de agir, mas também por que o temos de fazer de determinada maneira. Não basta, pois, propor e repetir as normas de sempre, nem é suficiente fazê-lo com respaldo da autoridade. É necessário justificá-las de modo racional e convincente. É necessário, portanto, fundamentar os valores e as normas morais. A isso tende principalmente a moral fundamental: justificar criticamente o agir moral.
A tarefa de fundamentar a moral não é irrelevante. Buscar a razão de si mesma parece uma exigência inevitável. Trata-se, porém, de uma empresa árdua e complexa. A teologia moral deve fundamentar seu sentido enquanto ética e enquanto teologia. Isto quer dizer: ela tem que legitimar o agir humano à luz da razão e à luz da fé, a partir da razão humana e a partir da revelação divina. À dificuldade que comporta a fundamentação racional, acrescenta-se a harmonização entre a razão e a fé.
Por um lado, a moral deve assumir a atividade da razão humana, a criatividade da pessoa, o dinamismo de sua responsabilidade. Por outro lado, deverá integrar a argumentação racional no saber teológico; há de reconhecer a primazia de Deus, a sabedoria da lei divina, e há de guiar o ser humano à busca de Sua vontade, à escuta de Sua Palavra e a responder, como pessoa livre e responsável, ao Seu chamado.
A moral é uma exigência da natureza humana e é, ao mesmo tempo, um compromisso que nasce da fé.
A tradição teológica católica defendeu que razão e fé não se excluem nem são duas realidades antagônicas. Ao contrário, sem perder seu valor, harmonizam-se e integram-se; "são como as duas asas com as quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade", afirmou
João Paulo II, no começo de sua encíclica Fides et Ratio, dedicada integralmente ao tema6. E continua: "Deus pôs no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a Ele para que, conhecendo-O e amando-O, possa alcançar a plena verdade sobre si mesmo"7. Se Deus é a resposta às últimas perguntas, se "reconhecer o Senhor como Deus é o núcleo central e o coração da Lei"8, Deus não responde ordinariamente às perguntas primeiras e imediatas. Para isso é necessária a mediação da razão. Para saber como orientar o comportamento humano, para configurar a ordem ética na vida concreta, a fé não é suficiente; faz-se necessário recorrer à ética racional, elaborada pelo esforço do ser humano, criado por Deus e ordenado a Ele. Como de maneira precisa expressa também João Paulo II: "Somente Deus pode responder à pergunta a respeito do bem porque Ele é o Bem. Deus, porém, já respondeu a essa pergunta: fê-lo criando o homem e ordenando-o ao seu fim com sabedoria e amor, mediante a lei inscrita em seu coração (cf. Rm 2,15), a lei natural"9. Vale dizer, Deus difunde no ser humano a luz da inteligência e, graças a ela, o homem pode chegar a conhecer o que deve fazer e o que deve evitar. Afirmou também João Paulo II: "Não menos importante do que a pesquisa no âmbito teórico é a que se leva a cabo no âmbito prático: quero aludir à busca da verdade em relação com o bem que é necessário realizar. Com efeito, com o próprio agir ético a pessoa, agindo segundo seu livre e reto querer, toma o caminho da felicidade e tende à perfeição"10.
4. A lei moral natural11
O homem participa da sabedoria e da bondade do Criador, que lhe confere o domínio de seus atos e a capacidade de se governar em vista da verdade e do bem. A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira.
A lei natural se acha escrita e gravada na alma de todos e de cada um dos homens, porque ela é a razão humana ordenando fazer o bem e proibindo pecar. (...) Mas esta prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito e nossa liberdade devem submeter-se12.
A lei "divina e natural"13 mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. A lei natural enuncia os preceitos primeiros e essenciais que regem a vida moral. Tem como esteio a aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo bem, assim como sentir o outro como igual a si mesmo. Está exposta, em seus principais preceitos, no Decálogo. Essa lei é
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6 Palavras iniciais da encíclica Fides et Ratio (FR ─ "Fé e Razão"), publicada em 14 de setembro de 1998.
7 Idem.
8 Encíclica Veritatis Splendor (VS ─ "O Esplendor da Verdade"), do papa João Paulo II, sobre algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja publicada em 6 de agosto de 1993.
9 VS (Veritatis Splendor) 12.
10 FR (Fides et Ratio) 25.
11 O texto é, integralmente, do Catecismo da Igreja Católica (CIC), dos números 1954 ao 1960.
12 Encíclica do papa Leão XIII (1878-1903) Libertas praestantissimum, sobre a liberdade humana, publicada em 20 de junho de 1888.
13 Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS ─ "As alegrias e as esperanças", sobre a Igreja no mundo de hoje) do Concílio Vaticano II, publicada em 7 de dezembro de 1965.
denominada natural não em referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão que a promulga pertence, como algo próprio, à natureza humana:
Onde é, então, que se acham inscritas estas regras, senão no livro desta luz que se chama a verdade? Aí está escrita toda a lei justa, dali ela passa para o coração do homem que cumpre a justiça, não que emigre para ele, mas sim deixando aí a sua marca, à maneira de um sinete (carimbo, chancela, selo) que de um anel passa para a cera, mas sem deixar o anel14.
A lei natural outra coisa não é senão a luz da inteligência posta em nós por Deus. Por ela, conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a Deus à criação15.
Presente no coração de cada homem e estabelecida pela razão, a lei natural é universal em seus preceitos, e sua autoridade se estende a todos os homens. Ela exprime a dignidade da pessoa e determina a base de seus direitos e de seus deveres fundamentais:
Existe, sem dúvida, uma verdadeira lei: é a reta razão. Conforme à natureza, difundida em todos os homens, ela é imutável e eterna; suas ordens chamam ao dever, suas proibições afastam do pecado. (...) É um sacrilégio substituí-la por uma lei contrária; é proibido não aplicar uma de suas disposições; quanto a ab-rogá-la (anulá-la)
inteiramente, ninguém tem a possibilidade de fazê-lo16.
A aplicação da lei natural varia muito. Pode exigir uma reflexão adaptada à multiplicidade das condições de vida, conforme os lugares, as épocas e as circunstâncias. Todavia, na diversidade das culturas, a lei natural permanece como uma regra que liga entre si os homens e lhes impõe, papa além das inevitáveis diferenças, princípios comuns.
A lei natural é imutável17 e permanente através das variações da história; ela subsiste sob o fluxo das idéias e dos costumes e constitui a base para seu progresso. As regras que a exprimem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades:
O roubo é certamente punido por vossa lei, Senhor, e pela lei escrita no coração do homem, (lei) que nem mesmo a iniqüidade consegue apagar18.
Obra excelente do Criador, a lei natural fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica.
Os preceitos da lei natural não são percebidos por todos de maneira clara e imediata. Na atual situação, a graça e a revelação nos são necessárias, como pecadores que somos, para que as verdades religiosas e morais possam ser conhecidas "por todos e sem dificuldade, com firme certeza e sem mistura de erro"19. A lei natural propicia à lei revelada e à graça um fundamento preparado por Deus e em concordância com a obra do Espírito.
5. A vida em Cristo
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14 Santo Agostinho (354─430); obra: "Da Trindade" (400─416).
15 Santo Tomás de Aquino (1225─1274).
16 Marco Túlio Cícero, em latim Marcus Tullius Cicero (106 a.C. — 43 a.C.): filósofo, orador, escritor, advogado e político romano.
17 GS 10
18 Santo Agostinho (354─430), na obra "Confissões" (Confesiones).
19 Constituição dogmática Dei Filius (DF ─ "O Filho de Deus", sobre a fé católica), do Concílio Vaticano I (1869-1870).
Este é o título que, significativamente, outorga o Catecismo da Igreja Católica à sua terceira parte, na qual propõe os conteúdos morais. Seguindo a Cristo e em união com ele, os cristãos são convidados a viver sob o olhar do Pai, e ser perfeitos como o Pai celeste, a ser imitadores de Deus e a viver no amor, a seguir os exemplos de Cristo Jesus, a conformar pensamentos, palavras e ações com "os mesmos sentimentos que teve Cristo" (Fl 2,5), a participar em sua vida de ressuscitado.
"Jesus Cristo sempre fez o que era do agrado do Pai20. Sempre viveu em perfeita comunhão com Ele. Também os discípulos são convidados a viver sob o olhar do Pai, 'que vê o que está oculto' (Mt 6,6), para se tornarem 'perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito' (Mt 5,48).
Incorporados a Cristo pelo Batismo21, os cristãos estão 'mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus'22, participando assim da vida do Ressuscitado23. Seguindo a Cristo e em união com ele24, podem procurar 'tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e andar no amor'25, conformando seus pensamentos, palavras e ações aos 'sentimentos de Cristo Jesus'26 e seguindo seus exemplos"27.28
Quando refletimos sobre a identidade da moral cristã, necessariamente temos que voltar-nos para Cristo, que constitui seu centro e sua referência fundamental. É ele que revela a vontade do Pai, a condição e a vocação integral do homem, e quem ensina a verdade a respeito do agir moral. Ele, que no dom de si mesmo é o cumprimento vivo e a plenitude da Lei, faz-se lei viva e pessoal que convida ao seguimento e que, mediante o Espírito, dá a graça para poder compartilhar sua vida e seu amor.
Realmente, "seguir a Cristo é o fundamento essencial e original da moral cristã"29. E isso significa não só escutar seu ensinamento e cumprir seus mandamentos, mas "aderir à própria pessoa de Cristo, compartilhar sua vida e seu destino, participar de sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai"30. A adesão a Jesus é a opção por ele, implica ser e viver para ele uma decisão de conversão total e profunda, ruptura com tudo o que não é ele. Significa tal vinculação à sua pessoa que suas palavras, ações e preceitos constituem a regra moral da vida cristã.
Cristo revela o ser e o agir humano. À luz de Cristo, esclarece-se o mistério da pessoa e dele o humano obtém resposta a respeito da orientação de sua vida. Quem quiser compreender até o fundo a si mesmo tem que aproximar-se de Jesus Cristo31; e quem quiser encontrar a resposta acerca do que é bom e do que é mau, é necessário que se dirija a ele. Cristo, Novo Adão, "manifesta plenamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a grandeza de sua vocação"32. Mostrar "a excelência da vocação dos fiéis em Cristo e sua obrigação de produzir frutos na caridade para a vida do mundo"33 é o encargo da teologia moral.
Assim, pois, a teologia moral, que tem por objeto o ser humano e seu agir livre e responsável, parte de Cristo, que o convida a participar em sua vida e o chama a segui-lo; e a vida cristã é vocação ao seguimento, diálogo de amor, participação e comunhão na vida de Jesus.
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20 Cf. Jo 8,29.
21 Cf. Rm 6,5.
22 Cf. Rm 6,11.
23 Cf. Cl 2,12.
24 Cf. Jo 15,5.
25 Cf. Ef 5,1-2.
26 Cf Fl 2,5.
27 Cf. Jo 13,12-16.
28 Os dois parágrafos correspondem aos números 1693 e 1694 do CIC.
29 VS 19.
30 Idem.
31 Encíclica Redemptor Hominis (RH ─ "O Redentor do homem"), de João Paulo II, publicada em 4 de março de 1979. No nº. 10. o papa afirma: "O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente ─ não apenas segundo imediatos, parciais, não raro superficiais e até mesmo só aparentes critérios e medidas do próprio ser ─ deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo".
32 GS 22.
33 Decreto Optatam Totius, 16 (OT ─ "A desejada renovação", sobre a formação sacerdotal) do Concílio Vaticano II, publicado em 28 de outubro de 1965.
6. À luz do Evangelho e da experiência humana
O estatuto epistemológico34 através do qual alcança sua missão a teologia moral, ou seja, o conhecimento científico que dá fundamentação a ela, está condensado no Concílio Vaticano II, na expressão "à luz do Evangelho e da experiência humana"35. Deste modo, alude à revelação bíblica, transmitida na Igreja pelo Espírito Santo, e ao conhecimento racional. "Na base de toda a reflexão que a Igreja realiza está a consciência de ser depositária de uma mensagem que tem sua origem no próprio Deus"36, porém, há, também, "um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer: inicia-se com a capacidade da razão de elevar-se mais além de todo contingente para ir até o infinito"37.
A ética é cristã à medida que se refere a Cristo, Palavra definitiva de Deus ao mundo. A fundamentação bíblica é, pois, essencial. A Sagrada Escritura é a alma da teologia e o Evangelho, "fonte de toda verdade salvífica e de toda norma de conduta"38. Por isso, a exposição científica da teologia moral deve nutrir-se da doutrina da Sagrada Escritura39.
Assim, pois, a reflexão teológica deve estar sob o juízo da Palavra de Deus, superando uma teologia moral ancorada em proposições e categorias filosóficas e jurídicas. Este reconhecimento leva à afirmação de que na Sagrada Escritura encontram-se formuladas as principais verdades da moral cristã. Ainda que não seja um conteúdo sistemático de moral, contém princípios, valores e normas que devem regular a vida dos cristãos, e, principalmente, contém a verdade a respeito do ser humano e seu destino. A partir dessa verdade, a pessoa é chamada a construir a própria personalidade.
Em relação às normas morais, a Sagrada Escritura traz, antes de tudo, as normas fundamentais ou transcendentes, isto é, as normas que expressam a intencionalidade profunda da existência moral e que guiam a autorrealização do humano em sua totalidade perante o chamado de Deus. Oferece, porém, também outras normas mais concretas e particulares, às quais alguns teólogos dão o nome de normas categoriais. Sua existência é evidente nos livros sagrados: são numerosas, concretas e pormenorizadas. Por um lado, existe conexão entre as orientações fundamentais e estas normas particulares. Por outro, precisamente enquanto particulares, é possível perceber na Escritura certa evolução e mudança. Pode-se, então, constatar seu caráter histórico e provisório, condicionado pelo ambiente sociocultural.
Isso tudo propõe um problema árduo: nem sempre é fácil discernir o que é palavra permanente de Deus e o que é condicionalmente cultural. E este é o grande desafio da teologia moral que, em seu labor científico, conta, além disso, com o Magistério40. Com efeito, a Palavra de Deus, afirmada no texto sagrado (Bíblia) e vivida na comunidade cristã ao longo dos séculos (tradição41) é proposta com autoridade aos crentes pelo Magistério. Como ensina o Concílio
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34 Epistemologia ou teoria do conhecimento (do grego ἐπιστήμη [episteme], ciência, conhecimento; λόγος logos], discurso) é um ramo da Filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados à crença e ao conhecimento. A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento (daí também se designar por filosofia do conhecimento).
35 GS 46.
36 FR 7.
37 FR 24.
38 Constituição dogmática Dei Verbum 7(DV ─ "A Palavra de Deus", sobre a Revelação divina) do Concílio Vaticano II, publicada no dia 18 de novembro de 1965.
39 Cf. OT 16 e FR 21-22.
40 Ensinar é a primeira tarefa dos seguidores de Jesus, o qual mandou os apóstolos: "Ide e ensinai..." (cf. Mc 16,15; Mt 28,19). De fato, todo cristão tem a tarefa de anunciar a boa nova. Mas, dado que o ensinamento particular está exposto a subjetivismos deformadores da verdade, são os sucessores dos apóstolos ─ o papa e os bispos ─ que detêm essencialmente o magistério. É a esse ensinamento autorizado que normalmente se dá o nome de Magistério. O Magistério não é uma fonte de revelação acrescentada à Escritura ou à Tradição, mas interpretativa de seu sentido autêntico.
41 Do latim tradere = entregar; traditio = transmissão. O fato de uma geração transmitir às seguintes suas idéias, costumes, instituições... É usada mais em sentido passivo: aquilo que uma geração recebe das anteriores. A entrega sucessiva do que se recebeu faz a tradição formar uma cadeia que une a tempos remotos. No campo religioso, é um elemento muito importante. Aplica-se comumente àquilo que foi recebido e não passou a constituir a Sagrada
Vaticano II: "O ofício de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, oral ou escrita, foi confiado unicamente ao Magistério da Igreja, o qual exerce em nome de Jesus Cristo"42.
O Magistério é, por sua própria natureza, serviço para a fé; ministério para escutar, guardar, interpretar e anunciar a Palavra de Deus. Este serviço realiza-se dentro e a favor da comunidade dos crentes. E goza da autoridade que vem de Cristo.
Finalmente, o Vaticano II reconhece que para a solução dos problemas morais não basta a Revelação, mas é necessária também a luz da experiência humana em suas manifestações múltiplas43. Alude, assim, à razão humana como fonte de ética cristã44. Afirma, expressamente, a insuficiência da Revelação ao reconhecer: "a Igreja, guarda do depósito da Palavra de Deus, do qual manam os princípios na ordem religiosa e moral, sem que sempre tenha à mão resposta adequada para cada questão, deseja unir a luz da Revelação ao saber humano para iluminar o caminho recentemente empreendido pela humanidade"45.
O Concílio não só reconhece a necessidade da experiência humana na interpretação dos valores morais; afirma também a vinculação existente entre a Revelação e a experiência, de maneira especial no ensino concernente aos sinais dos tempos e sua leitura à luz do Evangelho.
A expressão sinais dos tempos, consagrada na Constituição Gaudium et Spes46, tem origem evangélica (Mt 16,3). Seu reconhecimento impele a entrever na voz dos tempos a voz de Deus; a reconhecer Deus presente na história; a reconhecer os acontecimentos principais que influem na existência humana como lugar teológico47. A tarefa da teologia moral não é somente escutá-los e perscrutá-los (= investigá-los, examiná-los) atentamente, mas, sobretudo, interpretá-los, discerni-los e valorizá-los à luz da Palavra de Deus.
7. A atual crise da moral
Temos que reconhecer um fato facilmente constatável em nossa situação atual. Sempre houve debilidades, inconsequências e comportamentos alheios ao ideal de conduta formulado pela pessoa. A vida real, formada por tantas limitações, era julgada com critérios bastante unânimes e universais, que esboçavam com suficiente exatidão a fronteira entre o ilícito e o honesto. Embora nunca chegasse a ser vivida plenamente, a moral sempre constituiu uma força orientadora para que a pessoa soubesse como devia se comportar. Apesar das discussões que pudessem se dar em torno de determinadas colocações e soluções, ninguém colocava em dúvida a validade das normas que regiam a conduta humana. E se esse ensinamento, ademais, apresentava-se com o respaldo da autoridade da Igreja e com uma procedência, mais ou menos distante, das fontes da Revelação, então sua aceitação não era problemática. Só os maus poderiam se atrever a renegar semelhante obrigação. E a pessoa fraca e pecadora continuava trabalhando para se aproximar o máximo possível do ideal apresentado.
O fato mais significativo e característico da época mais recente, porém, é o forte sentimento de rejeição e agressividade provocado hoje pela simples ideia de moral. E essa dose de mal-estar e inconformismo se manifesta juntamente com um sinal ainda mais preocupante ─ o da indiferença ─, que pressupõe uma perda absoluta de interesse, negando-lhe qualquer importância para a vida
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Escritura. Apesar disso, também o que foi escrito teve normalmente uma pré-história de transmissão oral, mais dilatada no AT, mas também realizada no Novo. Assim, os atos e planos de Jesus foram, durante uma primeira época, transmitidos verbalmente. Por outra parte, a tradição complementa a Escritura, na qual não cristalizou a totalidade do ensinamento e das práticas recebidas. Mais do que duas fontes de revelação, trata-se de dois aspectos. Tradição e Escritura promanam ambas da mesma fonte divina; formam, de certo modo, um só todo e tendem para o mesmo fim (cf. DV 9).
42 DV 10.
43 GS 43, 44 e 46.
44 Cf. FR 24.
45 GS 33; cf. FR 49ss.
46 Cf. 4, 11 e 44.
47 A teologia católica dá o nome de lugares teológicos aos diversos domínios a partir dos quais o conhecimento teológico pode elaborar ser saber ou às diversas fontes nas quais se inspira: a Escritura, a Tradição, o Magistério, a liturgia etc.
real. Chega-se ao ponto de nem sequer dar-lhe atenção, considerando-se que o melhor é prescindir completamente dela.
Diante da diversidade de situações e opiniões, as perguntas afloram à mente. Tem sentido falar de uma moral nos dias de hoje? Será que não perdemos a luz de alguns critérios, que servem
de orientação para a nossa conduta, para acabar caindo em um subjetivismo anárquico e descontrolado? Será possível ter alguma segurança em meio a opiniões tão diferentes? Em tudo isso não estarão se manifestando os sintomas de um relaxamento progressivo, de uma falta de autoridade? Não se terá exigido muito mais do que a pessoa é capaz de viver? E as respostas também serão muito diferentes, de acordo com a situação pessoal e psicológica em que se encontre cada um de nós.
Mas, em qualquer hipótese, parece necessário excluir uma dupla solução, que pode ser pouco convincente por seu radical extremismo. Muitos ainda sonham com os tempos bastante próximos nos quais a concórdia e a segurança de uma doutrina se apoiavam na imposição doutrinal de tipo autoritário. Assim, o que se defende nessa primeira solução é que se levante a voz com maior ênfase para recordar e defender a tradição, calar as vozes dissonantes e definir com exatidão a fronteira entre o bem e o mal. Caso contrário, afirma-se, a novidade e o pluralismo de tantas opiniões continuarão fomentando o desconcerto e a desconfiança. A Igreja, sobretudo, deveria recorrer ao seu Magistério para impor a verdade e condenar os erros que não estão de acordo com sua doutrina. Se não quisermos que o nível ético continue descendo progressivamente, num momento como este a tarefa fundamental é manter os princípios, para além das fraquezas e inconsequências humanas.
Outros podem tentar reagir pelo caminho oposto. Apesar da decadência e da corrupção que podem ocorrer, a crise atual corresponde a uma nova consciência da sociedade, que denuncia como falsos e hipócritas muitos dos princípios morais. Se os homens não vivem de acordo com a moral, isso significa que a moral já não corresponde às suas exigências atuais. Então, a tarefa básica consistirá na busca que for possível para acomodar a ética às necessidades e urgências do momento presente. Tratar-se-ia, inclusive, de realizar uma operação semelhante às liquidações comerciais, baixando o preço no mercado ─ com exigências menores ─, para ver se as pessoas se animam um pouco e passam a aceitar melhor o produto que lhes é oferecido. Se as pessoas não conseguem saltar a altura proposta, o remédio mais eficaz não seria manter essa altura ─ para não renunciar aos princípios de sempre ─, mas sim baixá-la de acordo com as possibilidades de agora.
Ambas as posições parecem insatisfatórias: por um lado, não basta repetir, mesmo com mais força e energia, sem convencer; por outro lado, não se trata de reduzir e baixar, embora às vezes seja necessária uma adaptação, mas sim de autenticar e esclarecer. Parece ser mais urgente e eficaz o esforço por uma apresentação que, sem retirar nada daquilo que seja exigência verdadeira, torne mais compreensível e atraente a imagem de uma ética cristã.
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