quarta-feira, 10 de março de 2010

Aula matão: valorização do jovem na Igreja

Uma interpretação teológica da violência contra a juventude nos tempos atuais

Dr. Pe. Paulo F. Dalla-Déa, faap.
Teólogo Prático-Pastoral
Membro da SOTER


INTRODUÇÃO GERAL AO TEMA

Esta mesa de debates focaliza juventude e violência. Não sou habilitado para falar da violência juvenil. Sociólogos e outros profissionais são mais qualificados para isto. Contudo, não posso me recusar a deixar de dar a minha contribuição. Sou teólogo e como teólogo quero trabalhar. A ciência teológica atual acha possível e desejável trabalhar em equipe com outras abordagens cientificas e humanas, já que todo discurso sobre Deus é um discurso (inspirado ou não por Deus) em linguagem humana sobre Deus. Para Deus se fazer entender pelo humano ele precisa falar no nível de compreensão dos humanos ou eleva-los á sua realidade de vida. Como não estamos na realidade divina (a vida eterna) e sim no tempo e no espaço especifico da humanidade, precisamos ser humildes e reconhecer que a linguagem teológica também tem limitações de tempo e espaço. Assim, a ciência humana, também sujeita às mesmas regras, pode nos ajudar.
Hoje se fala muito sobre juventude e sobre adolescência, como sendo uma espécie de cultura específica. Ou uma sub-cultura da sociedade capitalista. A cultura juvenil como conhecemos no Ocidente cristão - não parece existir na sociedade muçulmana e na sociedade hindu. Cultura juvenil é produto do capitalismo, cada vez mais disseminado pelo planeta. Mas não se pode esquecer que a juventude é uma etapa da humanidade. É preciso inserir o conceito juventude na sociedade geral. Uma sociedade cheia de contradições, de competitividade e de rachaduras de toda espécie. Uma sociedade que não gera a vida, mas a morte de milhões de seres humanos para manter a vida de outros milhares deles. A pobreza e a morte de pessoas na África, na Ásia e em outros lugares do planeta ajuda a manter a vida sustentável da Europa e da América do Norte. O planeta não agüentaria se todos os povos tivessem o nível de vida dos americanos ou mesmo dos europeus. Precisaríamos de mais planetas Terra no sistema solar para que isto fosse possível.
Visto deste ponto-de-vista macro, a juventude é um corte de parte da humanidade capitalista atual. Ou seja: não se podem ver os jovens sem se considerar as contradições capitalistas e os desejos dos adultos na sociedade eles são muitos: o consumo gera desejos e comportamentos contraditórios. Ao mesmo tempo em que se quer e deseja a paz, se quer manter a desigualdade, esquecendo que a falta de oportunidades e de emprego para todos reprime o desejo de consumo e de bem estar, gerando uma repressão que se pode explodir em roubos e mais violência. Uma sociedade de iguais é uma sociedade menos violenta por definição e por experiência, veja-se a Europa. Lá, há mais de cem anos foram feitas as reformas agrária, educacional e salarial que ainda se precisa fazer no Brasil. E é uma sociedade muito menos violenta. Os protestos da juventude em Paris só reforçam esta tese: quando as oportunidades são negadas (como pelos atuais neoliberais governos da França), a violência explode também lá.
Mas há outras contradições: cada vez mais o trabalho no campo é mecanizado e as pessoas vivem nas cidades. Ora, até num zoológico, onde o espaço fica superpovoado, os animais (e o bicho Homem) ficam mais sujeitos a uma convivência estressante e violenta. Mesmo em sociedades mais calmas. Onde há muitos homens vivendo em um espaço apertado, haverá mais violência. Em espaços rurais ou ajardinados, a violência tende a ser muito menor, embora ela não seja eliminada. Para não existir violência seria preciso algumas intervenções radicais no humano, suprimir a adrenalina dos corpos, lobotomizar as pessoas ou isola-las da convivência social. Como estas soluções representam mutilações na existência humana, não são desejáveis nem possíveis. Assim, como a população mundial das cidades anda crescendo, nós – humanos – vamos ter que nos adaptar com um nível mais elevado de violência diária. Violência que não pode ser incentivada, mas terá que ser minimamente suportada.
Mas há também problemas específicos da realidade juvenil. Os adolescentes tendem a ter um nível de onipotência juvenil muito grande. A onipotência juvenil se caracteriza pelo fato do adolescente achar que ele pode tudo. Que com ele as coisas ruins não vao acontecer porque ele é “mais esperto” que os adultos que conhece. Que eles estão ultrapassados, não sabem de nada e por isto se dão mal. Adolescentes de classe média e alta, que nunca trabalharam não tem noção dos perigos de suas atitudes, das conseqüências que elas trazem, já que os pais destas classes tendem a superproteger os filhos e filhas. O fato de ainda não precisarem trabalhar para se sustentar já configura uma superproteção, que é estendida na medida em que os pais podem suportar os filhos em casa indefinidamente. Há casos de filhos adolescentes com 35 anos ou mais. A adolescência termina com a mudança de casa e conseqüente autosustento. Antes disto, mesmo com 55 anos, a pessoa ainda continua adolescente.
Este sentimento de onipotência é mais forte quando os pais protegem mais os filhos, funcionando como escudo protetor de problemas e solucionando os problemas dos filhos sem o esforço deles. Por isto, se tem muito mais problemas de acidentes com adolescentes e jovens bêbados de classe média e alta do que com adolescentes e jovens de classes baixa e pobre. A solução deste problema se situa em níveis diferentes: o trabalho, a escola e a religião. São eles que ajudam a colocar os limites nas pessoas e a impulsionar a vivência social num nível civilizado.
O problema é que a escola não pode mais se apoiar no trabalho já que o adolescente e o jovem sabem que não há trabalho para todos. Numa sociedade com alto índice de desemprego como é o Brasil, o trabalho formal é quase um privilégio de poucos. E a escola também não pode apoiar-se na religião, visto que a religião está tão fragmentada em tantos cultos, cristãos ou não, que não pode mais dar o freio moral que impede que o homem seja lobo de outro homem. A sociedade capitalista elimina a hipótese Deus e só a considera seriamente quando esta hipótese gera lucro. Assim, Deus não interessa, mas os cultos religiosos sim, porque geram trabalho e consumo para muitas pessoas. O conteúdo da religião e seu efeito social é praticamente descartado, enquanto se valoriza cultos da prosperidade sob a alcunha de cultos religiosos. Os cultos da prosperidade não são cultos a Deus, mas ao dinheiro. Se vou rezar na congregação para que eu resolva os meus problemas financeiros e arrume emprego que dê status e dinheiro, não estou preocupado com Deus, com Jesus ou com outra entidade, ou sequer com o meu próximo, mas comigo mesmo, numa visão individualista e não solidária. Um culto assim não ajuda as pessoas a ser mais humanas, mas as embrutece mais ainda, colaborando para a manutenção do status quo.
A religião cristã ficou famosa na história da humanidade por introduzir o cuidado com os pobres, com os doentes e com os desvalidos, impondo limites morais e tornando a convivência social menos animal. Mas uma religião individualista – embora faça um sucesso enorme na mídia – não consegue se contrapor ao comportamento capitalista que gera as contradições e os problemas sociais que vemos. Muito pelo contrário, abençoa e justifica a exploração do homem pelo homem, jogando isto para o fatalismo do discurso da vontade de Deus. Deus não merece esta culpa. Pelo menos, o Deus revelado na Bíblia: Javé, o libertador\resgatador dos pobres e dos desvalidos.
O cristianismo tradicionalmente tem funcionado como freio moral para as pessoas. Esta é a crítica da Ciência desde o Renascimento. Uma crítica fundamentada para a religião cristã da época. Desde a virada epistemológica feita pelo Concilio Vaticano 2º, a religião cristã tem sido também motor de revoluções e lutas, superando a fase mais repressora. A Revolução Cubana (década de 50), a Revolução Sandinista (década de 80) e inúmeras lutas contra regimes militares (incluindo o Golpe de 1964, no Brasil), foram motivadas por uma visão religiosa libertadora da vida e da Bíblia. Infelizmente, esta visão tradicional é ainda a mais dominante, mas não é mais a única.
Há uma possibilidade de se trabalhar com os jovens e os adolescentes com uma visão religiosa menos conservadora e mais revolucionária, mais conforme com a autonomia que o mundo atual exige das pessoas, desde Kant. Se Jesus, o Cristo, fosse tão obediente como querem alguns discursos religiosos conservadores, ele não teria morrido na cruz, mas de idade. A cruz era o castigo infringido aos revolucionários do Império Romano. Ao longo de séculos, o cristianismo foi cooptado pelo Estado (a partir da virada constantiniana, em 313 d. C.). Desde o século 19, a Igreja e o Estado vem se libertando mutuamente, seja por iniciativas da sociedade, seja por iniciativa da Igreja. A partir de 1965, a Igreja tomou a si muito deste fardo e anda (ainda de forma lenta) se separando do Estado.
Feita esta longa e necessária introdução, contextualizando a realidade social que vivemos no capitalismo dependente e selvagem do Brasil, passemos a algumas considerações sobre temas mais específicos da Teologia.

1. O SACRIFICIO DA JUVENTUDE: Deus quer a morte dos jovens?

Sou teólogo prático-pastoral, não sou biblista nem teólogo sistemático. Portanto, não vou fazer o que não é de minha competência. Não vou fazer uma análise minuciosa do texto bíblico ou uma exegese dele. Apenas quero fazer alguns comentários que sirvam para a nossa análise e a nossa pastoral eclesial. Nem por isto menos importante ou relevante . A partir da leitura bíblica que se faz, se obtém uma forma de pensar e refletir a vida e a teologia. O primeiro e paradigmático texto é do susto que levou Isaac com seu pai Abraão.


“Depois destes acontecimentos, Deus submeteu Abraão a uma prova. Chamando-o, disse: “Abraão”, e ele respondeu: “Aqui estou”. 2 E Deus disse: “Toma teu único filho Isaac a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto sobre um monte que te indicar”. 3 Abraão levantou-se bem cedo, selou o jumento, tomou consigo dois criados e o filho Isaac. Rachou lenha para o holocausto e se pôs a caminho para o lugar do qual Deus lhe havia falado. 4 Ao terceiro dia Abraão levantou os olhos e viu de longe o lugar. 5 Disse então aos criados: “Ficai aqui com o jumento enquanto eu e o menino vamos até lá. Depois de adorarmos a Deus, voltaremos a vós”. 6 Abraão tomou a lenha para o holocausto e pôs às costas do filho Isaac, enquanto levava o fogo e a faca. E os dois continuaram caminhando juntos. 7 Isaac disse ao pai Abraão: “Pai!”–“O que queres, meu filho?”respondeu. E o menino disse: “Temos o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” 8 E Abraão respondeu: “Deus providenciará o cordeiro para o holocausto, meu filho”. E os dois continuaram caminhando juntos. 9 Chegados ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu ali o altar, colocou a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha do altar. 10 Depois estendeu a mão empunhando a faca para imolar o filho. 11 Mas o anjo do Senhor gritou-lhe dos céus, dizendo: “Abraão! Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!”12 E o anjo disse: “Não estendas a mão contra o menino e não lhe faças mal algum. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu único filho”. 13 Abraão ergueu os olhos e viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres num espinheiro. Pegou o carneiro e ofereceu-o em holocausto em lugar do filho. 14 Abraão passou a chamar aquele lugar: “O Senhor providenciará”. Hoje se diz: “No monte em que o Senhor aparece”. 15 O anjo do Senhor chamou Abraão pela segunda vez lá dos céus 16 e lhe falou: “Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor – uma vez que agiste deste modo e não recusaste teu único filho, 17 eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. 18 Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque tu me obedeceste”.
Gn. 22
A estória do sacrifício de Abraão é sobre um grande engano. Abraão creu que Javé se agradaria do sacrifício de seu filho Isaac, visto que todos os deuses que ele conhecia gostavam disto. Os deuses têm o estranho costume de gostar da morte dos homens e saborear o seu sangue. Na antiga Mesopotâmia de Abraão, os deuses se agradavam com sacrifícios de crianças e de jovens. No antigo Egito, os deuses se agradavam com os funerais dos Faraós, em que eram enterrados dezenas de empregados juntos com eles. Na civilização Inca, o deus Sol também “pedia” o coração de suas vitimas. Atualmente, o capitalismo financeiro faz este papel de exigir a morte de muitos para a manutenção dos privilégios de poucos, a morte na África subsaariana é a face negra da vida de europeus e norte-americanos. Os ídolos têm esta pretensão: receber a vida dos humanos. O relato bíblico diz que Deus chamou Abraão e lhe pediu esta prova de fé e de amor, como os outros deuses. Abraão, acostumado que estava a ver sacrifícios humanos aos deuses não estranhou o “pedido” feito. Era normal a morte de jovens e crianças.
O carinho de Abraão por Isaac se mostra que ele não deixa que seu filho leve o fogo e a faca, ambos instrumentos que poderiam causar algum dano. Mas o relato é surpreendente: Javé se mostra muito melhor do que se esperava: não só impede o sacrifício na última hora, como também substitui a vitima por uma vitima animal e ainda mostra que o sacrifício humano não é agradável aos olhos do Senhor. Nunca.
Javé, o Deus revelado na Bíblia, não quer a morte das pessoas. Pelo contrário, quer que elas vivam e possam transmitir a vida, pois ela é dom. Pelo contrário, os cultos dos deuses requerem a morte de muitas pessoas, a seu serviço. O critério bíblico para se saber se o Deus que está à nossa frente é Javé, o Deus libertador\resgatador da Bíblia, é este: se ele exige ou não a morte das pessoas.
O mundo adulto frequentemente se engana sobre a divindade e sobre os jovens. E, em vez de eles serem protegidos porque são o futuro da existência humana sobre a Terra e a fonte de renovação das culturas dos povos, são frequentemente imolados em sacrifício, num engano de solução de problemas. Por que Abraão achou que Javé poderia querer a vida de seu filho herdeiro? O capitulo anterior informa que:

Por isso o lugar foi chamado Bersabéia,32 porque ali os dois fizeram juramento. Tendo feito aliança em Bersabéia, Abimelec e Ficol, chefe do exército, partiram de volta ao país dos filisteus. 33 Abraão plantou em Bersabéia um tamarindeiro e ali invocou o nome do Senhor , o Deus Eterno. 34 Abraão residiu muito tempo na terra dos filisteus
Gn 21

Será que, por ter residido muito tempo entre os filisteus, Abraão se esqueceu do essencial do seu culto a Javé e da sua função como pai? Abraão é um adulto colocando o seu filho para ser sacrificado. A Bíblia não nos informa em que apuros Abraão se meteu para ter que fazer um sacrifício tão grande, mas pode-se ver que é mais fácil para o adulto, mesmo tendo um carinho grande pelos jovens, colocá-los como parte do problema e com a responsabilidade de toda a solução, seja ela qual for.
É mais fácil para a sociedade adultocentrada colocar ao jovem o peso de ser sacrificado para resolver os seus problemas. O jovem torna-se vitima oferecida no altar dos sacrifícios normais. Quem tem que resolver o problema da previdência e das aposentadorias? Não serão as futuras gerações que agora ingressam no mercado de trabalho? Quem tem que ser sacrificado no problema do emprego? Não é a juventude que sofre o desemprego por não ter experiência? Quem tem que ir à guerra combater nas linhas de frente? Não são os jovens soldados comandados por oficiais adultos? Quem tem que resolver o problema ecológico da poluição (séc. 19 e 20) e da superpopulação de pobres do planeta (século 20 e 21)? Quem são as maiores vitimas da violência do trânsito das metrópoles? Quem são as vítimas do tráfico e dos vícios da sociedade drogada e anestesiada em falsas felicidades? Quem são as maiores vítimas da AIDS e das doenças sexualmente transmitidas?
Ora, estes problemas não foram causados por eles, mas serão deixados pelos adultos para que eles resolvam, agora ou mais para frente. Quando eles forem adultos, quem sabe, tenham a sorte de empurrar para futuras gerações também. O jovem questiona como Isaac fez, mas tem sempre uma resposta com a de Abraão, vaga e imprecisa. Ideológica. Resposta que esconde a verdade nua e crua dos fatos.
No relato de Gênesis, o anjo de Deus (face visível de Javé) intervém na última hora porque – senão – Abraão iria acabar concluindo o ritual. Não será tarefa da teologia de hoje mostrar à sociedade adultocentrada que é preciso segurar a sua mão, antes que os jovens morram em sacrifício pelos problemas dos adultos? Será que sempre os jovens terão que levam o peso da solução dos problemas como Isaac levava a lenha, enquanto Abraão – carinhosamente – levava o fogo e o punhal? Os instrumentos do sacrifício estavam na mão do adulto, enquanto o jovem levava o peso maior e se preparava – sem entender direito – para ser amarrado e oferecido como sacrifício para o culto. Que, neste caso, não seria um culto a Javé, mas a um ídolo. Apenas os falsos deuses exigem o sacrifício de outros para si. Javé – pelo contrário, proíbe este tipo de culto e se desgosta dele. O relato da encarnação de Jesus, o Cristo, é o relato da divindade que se torna humana para se auto-imolar. Deus não manda que outros façam sacrifícios, ele mesmo o faz em lugar do homem. O messias esperado é uma autorevelação de Deus, de um Deus tão surpreendente que se torna homem e se imola pelo homem. É uma historia bem diferente. Uma história de amor e sacrifício. Bem diferente do que vemos entre humanos, onde os sacrifícios costumam ser empurrados para as futuras gerações.
No relato bíblico, a bênção que Abraão recebe passa pela vida do seu filho Isaac, porque atinge a sua descendência. Ironicamente, o texto bíblico termina com a vida do jovem se tornando bênção para o adulto.

2. A MANIPULACAO DA JUVENTUDE PELOS ADULTOS GERA A MORTE

A manipulação é algo sistematicamente usado na sociedade capitalista do espetáculo global. Manipula-se pela falta de informação e pelo excesso dela. Vindo de interesses tão diferentes como díspares, a informação excessiva faz com que a população se sature dela, deixe-a de lado por não saber mais qual fonte é confiável. Se as fontes são todas confiáveis, porque as informações são contraditórias? Porque pesquisadores de nível internacional se contradizem em números de pesquisas? Não será porque são empregados de multinacionais diferentes, com interesses em conflito? Gostaria de me reportar para um texto bem interessante da Bíblia. É o relato de Davi e de Golias. Porque Davi venceu Golias? Foi APENAS porque Deus estava a seu favor? Mas isto não foi atribuído a um milagre e sim a um atuar conjunto entre Javé e Davi. O texto vai todo o capitulo 17 de 1º Samuel. Vou resumir um pouco o texto:

v. 1-3: Introdução do relato
4-11: a descrição de Golias e o medo dos israelitas
12-37: Davi chega ao acampamento e é desprezado por ser jovem pelo irmão mais velho (adulto)
38-39: Numa tentativa de proteção do adulto ao jovem, o rei Saul dá a sua armadura para Davi, que não consegue andar com ela e a tira.
40-42: Davi pega as suas armas e enfrenta Golias e é desprezado por ser novo e bonito.
43-47: inicio da luta: insultos mútuos.
48-51: Davi acerta a pedrada e corta a cabeça de Golias (invenção de novo maneira de lutar que não é percebida pelos militares adultos)
52-54: fuga dos filisteus e entusiasmo dos israelitas
55-58: o rei Saul (adulto) quer conhecer a família de Davi

O que isto nos fala? Que Davi foi sempre desprezado por ser novo e bonito. “Galã de novela só serve para aparecer e fazer figura...” é o que pensavam de Davi. E ele mostrou que não era nenhum “loiro e burro”, mas alguém que tinha cabeça no lugar e uma fé em Javé que lhe era motor de ações concretas e não idealizadas. Enquanto os adultos, acostumados ao combate da guerra e (por isto mesmo) vendo a realidade a partir de uma única ótica, não conseguiam resolver o problema do desafio de Golias, homem extremamente forte e aparelhado para a luta, Davi inventou um novo tipo de abordagem, a partir do conhecimento que ele tinha. A partir da sua experiência em lutar para defender o rebanho, ele nocauteia Golias, para depois vencê-lo. Na luta corpo-a-corpo, ninguém teria chance contra Golias. Por isto mesmo, Davi não usou esta técnica de luta, mas percebeu uma nova forma de abordagem, a partir da autoconfiança do seu adversário. Nenhum adulto pode perceber isto, porque estavam vendo o problema pela mesma ótica.
Por ser jovem e inexperiente nas artes da guerra e por incorporar um tipo de conhecimento desprezado pelos adultos, Davi conseguiu vencer o combate. Será que Davi era o único pastor daquele campo de batalha? Com certeza não. Muitos eram pastores recrutados para aquela guerra. A grande esperteza de Davi se mostra em dois campos distintos: em não usar as armas dos adultos (a armadura de Saul), que só poderia atrapalhar, e em não usar a técnica conhecida de combate, mas em inventar uma nova modalidade. Aí podemos ver onde é que Javé estava combatendo com Davi: inspirando-o a ser criativo em suas soluções, enquanto todos estavam preocupados em usar os conhecimentos tradicionais, confiando em suas próprias forças e técnicas.
Hoje também, os melhores jovens têm desprezado o conhecimento e a manipulação da mídia e feito as suas próprias escolhas, que ainda são desprezadas pelos adultos, com discursos preconceituosos. Este é mais um tipo de violência acometida contra os jovens de hoje. Os jovens não têm a experiência dos adultos. Por isto mesmo, eles trabalham e criam coisas novas, partem para novas soluções dos mesmos problemas. E é assim que fazem a sociedade avançar. O discurso de “no meu tempo as coisas eram diferentes, os jovens respeitavam mais os mais velhos...” é profundamente ideológico, conservador e violento. Violência simbólica, mas nem por isto menos paralisante. O desprezo pela inexperiência e pela beleza de Davi ainda se reproduz nas pessoas e nas falas de hoje, aqui e agora, por muitos.
Outro texto que gostaria de comentar sobre manipulação é o texto do banquete de morte em que foi decidida a morte de João, o batista.

21 Chegou um dia oportuno, quando, por ocasião de seu aniversário, Herodes ofereceu um banquete aos grandes de sua corte, aos comandantes e pessoas ilustres da Galiléia. 22 A filha de Herodíades entrou e se pôs a dançar, agradando ao rei e aos convidados. Herodes disse à moça: “Pede-me o que quiseres e eu te darei”. 23 E lhe jurou: “Tudo que me pedires eu te darei, ainda que seja a metade de meu reino”. 24 Ela saiu e foi perguntar à mãe: “O que é que eu peço?” Esta lhe respondeu: “A cabeça de João Batista”. 25 Ela voltou apressadamente à presença do rei e fez o pedido: “Quero que me dês agora mesmo, numa bandeja, a cabeça de João Batista”. 26 O rei ficou triste, mas não quis deixar de atendê-la por causa do juramento e dos convidados. 27 Sem tardar, mandou um carrasco com a ordem de trazer a cabeça de João. Ele foi e degolou João na cadeia. 28 Depois trouxe a cabeça numa bandeja e a deu à moça, que a entregou à mãe. 29 Sabedores do fato, os discípulos de João vieram pegar o corpo e o sepultaram.”
Mc 6, 21-29

Este texto é exemplar em muitas coisas. Nele vemos como os adultos manipulam e roubam os jovens. A mãe da dançarina (adulta) manipula e rouba o presente que a filha (adolescente\jovem) deveria ter como paga pela dança de entretenimento após o jantar dos ricos governantes. Ela dançou, mas quem recebeu a paga foi a sua mãe, que nada fez. A jovem dançarina faz o que todo adolescente faz ao adulto que confia: pergunta o que é o melhor a fazer. O adulto (mãe) não pensa na jovem que pergunta, mas manipula a resposta em favor de si e de seus problemas, explorando a inexperiência e a confiança da jovem. O que deveria ser o pagamento pela dança sem compromisso se transforma então em solução de um problema de um adulto, vingando-se de outro adulto incômodo.
O governante adulto não conseguia resolver o problema público, que estava num impasse político-religioso. A solução pública se tornava um fardo. O fardo foi removido pela manipulação de um adulto, colocando a responsabilidade da morte na pessoa da jovem dançarina. A ela coube pedir a cabeça de João, o batista, resolvendo o impasse e ficando com a responsabilidade pública do fato. O casal adulto de governantes se safa do peso de dar a sentença, que agora não precisou nem de julgamento, nem de tribunal, nem de testemunhas e nem gerou rebelião de protesto. O conchavo político foi usado a favor da dominação e da exploração do povo, ficando João, o defensor dos pobres e de sua opinião, morto e a jovem dançarina responsabilizada. O jantar festivo dos grandes dominadores acaba em morte dos pobres. A festa dos ricos termina com a morte dos pobres e a manipulação dos jovens.
Gostaria de pensar que este é um fato isolado, mas tenho visto muitos jovens que – não tendo a esperteza de Davi e nem a sua própria opinião diante dos fatos – ao perguntar aos adultos qual a chave dos problemas, acabam manipulados e roubados. Ajudam o mundo adulto a ficar mais rico e a colocar a culpa simbólica dos problemas nas gerações mais jovens. A ingenuidade da dançarina se mostrou na confiança sem limites no mundo dos adultos. Ela deveria ter desconfiado, nem que fosse um pouco só, de que ela corria o risco do mundo adulto pensar mais em si do que nos jovens.


3. PLANO DE JESUS PARA OS JOVENS

Uma vez que já vimos algumas formas de manipulação e de violência da sociedade adulta contra o mundo dos jovens, passemos a ver algo mais positivo. A relação de Jesus (um jovem pregador com visões bem diferentes da leitura da Torá feita naquele tempo) com os jovens de seu tempo e de sua cultura. O primeiro texto será o da ressurreição do filho da viúva de Naim.

11 Tempos depois Jesus foi para uma cidade chamada Naim, acompanhado dos discípulos e de uma grande multidão. 12 Ao aproximar-se da porta da cidade, saía o enterro de um jovem, filho único de uma viúva. Uma multidão numerosa da cidade o seguia. 13 Ao vê-la, o Senhor ficou com muita pena e lhe disse: “Não chores”. 14 E, aproximando-se, tocou o caixão; os que o carregavam, pararam; e Jesus disse: “Moço, eu te ordeno, levanta-te”. 15 O morto sentou-se e começou a falar, e Jesus o entregou à mãe. 16 O medo se apoderou de todos, e louvavam a Deus, dizendo: “Um grande profeta surgiu entre nós”; e: “Deus visitou seu povo”. 17 A notícia do fato correu por toda a Judéia e por toda a redondeza.
Lc 7

O texto bíblico só nos dá as informações essenciais. Não nos informa do que morreu o jovem. Acidente de trabalho? Doença? Assassinato por revanche ou romance? O que é certo é que não sabemos nada sobre isto. E temos outra certeza: contrariando a sua práxis normal, é Jesus que se adianta e se oferece para consolar e para curar\ressuscitar. Jesus achou aquela situação insustentável: um jovem não deveria estar morto, ainda mais quando a sua mãe não tem mais com quem contar. As viúvas em Israel dependiam do trabalho de seus filhos ou da caridade da comunidade, em geral também muito pobre. Havia poucos ricos em Israel naquele tempo. E, embora a esmola e a caridade com os órfãos e as viúvas fossem mandamentos bíblicos, isto poderia não ser suficiente para o sustento de tantas viúvas e pobres naquela época. (Cfr. 1Rs 17,7-24; 2Rs 4,8-27)
O certo é que Jesus não se conforma àquela situação e vai lá para dar um jeito nisto. Primeiro, Jesus fala com a mãe, a mais interessada e a mais sofrida. Falar com mulheres em público era já – de si – um fato escandaloso. Depois Jesus, sem cerimônias, toca o caixão (tocar o caixão só era permitido aos locos ou aos profetas) e ainda dá uma ordem estranha: ordena ao jovem que se ponha em pé. Ele não estaria realmente morto? Ou ele teria morrido por falta de perspectivas e sonhos? Sim, porque isto também mata. Causa uma depressão incurável que vai minando aos poucos a energia vital de uma pessoa, até o ponto em que ela se acaba ou que põe fim à sua própria vida. Seria ele um suicida? Não sabemos, mas no ambiente bíblico, o suicídio é raro.
Jesus veio para dar a vida, em todas as suas formas (Jo. 10,10). Jesus não aconselha ou pede, mas ordena: o lugar do jovem é de pé diante da própria vida. O jovem primeiro se senta (sai de sua posição submissa), depois fala (dá sua opinião) para um grupo que certamente o escuta surpreso (jovens não tinham direito de opinião reconhecida até os 30 anos), depois retorna ao seio da família (retomando a sua função de proteger a vida de sua mãe) Ele agora tem uma missão que lhe é confiada. Aos pés da cruz, João é encarregado da mesma missão: proteger e amparar a mãe de Jesus. (Jo. 19,25-27) A missão do jovem torna-se de não só manter e desenvolver a própria vida, mas a de proteger e manter a vida de outro.
Dar e proteger a vida é uma missão a que precisamos ajudar os jovens a desenvolver. Isto é não só sair da letargia de ficar deixado e depressivo, minando as próprias energias vitais. É preciso pôr-se de pé e dar a sua própria opinião, dizer o que se sente e o que acha da vida e das relações que ela está tecendo. Mas – ainda hoje – sob o pretexto de que o jovem não tem opinião, a sociedade não quer escutar o que o jovem tem a dizer. As nossas campanhas de conscientização são frequentemente campanhas de adultos para jovens. Será que eles são têm nada a dizer sobre a sua vida, sobre a sociedade, sobre a Igreja ou sobre os próprios problemas? Nesta mesa mesmo, quem é o jovem convidado para discutir os problemas da juventude? Parece mesmo que só Jesus (que não era velho) se importa com o jovem, com sua morte e com sua opinião.
Quem sabe, nós da Igreja, tenhamos que fazer a mesma coisa: escutar mais os jovens antes de querer ter as respostas prontas para trabalhar com eles. O papa João Paulo 2º chega a dizer que a Igreja é chamada a escutar os jovens. Diz mesmo que a Igreja precisa aprender deles, aprendendo a escutar deles a sua voz e a sua opinião. (Christifidelis Laici, 46). O papa chegou aqui muito próximo desta atitude jesuânica. Falta agora as nossas comunidades darem espaço de participação completa aos jovens. Eles podem não ter a sua opinião perfeitamente elaborada e esquematizada, mas têm mais conhecimento da própria realidade que nós, que temos as idéias assentadas, mas nem sempre correspondentes à realidade, porque ela já mudou.
Última observação: Naim é uma insignificante cidade da Galiléia, um lugar pobre e desimportante. Jesus não leva em conta nada disto: se compadece, ressuscita e escuta o jovem pobre com o mesmo carinho que vamos ver demonstrar ao jovem rico. Para muitos, é mais fácil escutar os jovens ricos, com mais anos de estudo e com mais formação. Será que eles têm mais opinião ou mais problemas? O rap, o hip-hop, o funk, o samba e tantos outros ritmos e formas poéticas dos pobres parecem nos mostrar o contrário: são os pobres que – vivendo mais imersos nos problemas – acabam por refletir e opinar mais sobre eles, embora a sua voz seja constantemente desvalorizada pela sociedade. Que insiste em ouvir mais a opinião dos ricos e dos filhos da classe média. Será que a Igreja não poderia ter uma prática diferente, já que ela é chamada a ser o grupo seguidor de Jesus, o Cristo?
Passemos a outro texto de Jesus se relacionando com uma outra pessoa jovem, desta vez uma menina.

21 Depois que Jesus atravessou de barco novamente para a outra margem, uma grande multidão reuniu-se em torno dele. Ele se achava junto ao mar. 22 Chegou um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Logo que o viu, caiu aos seus pés e 23 pedia-lhe com insistência: “Minha filhinha está nas últimas. Vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva”. 24 Jesus foi com ele, e grande multidão o seguia e o apertava de todos os lados.
(...)
35 Jesus estava ainda falando, quando chegou alguém da casa do chefe da sinagoga, dizendo: “Tua filha morreu. Para que continuar incomodando o Mestre?”36 Ao ouvir, porém, a notícia, Jesus disse ao chefe da sinagoga: “Não tenhas medo! Basta crer!”37 E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago. 38 Ao chegar à casa do chefe da sinagoga, Jesus viu a agitação e muitos chorando e se lamentando. 39 Entrou na casa e lhes disse: “Por que toda esta agitação e este choro? A menina não morreu! Está dormindo”! 40 Eles riam-se dele. Mas ele fez sair todo mundo, tomou o pai e a mãe e os que levava consigo, e entrou onde a menina estava deitada. 41 Pegou-lhe a mão e disse: “Talitá cumi !”, o que quer dizer: “Menina, eu te ordeno, levanta-te!” 42 Imediatamente a menina se levantou e se pôs a caminhar, pois tinha doze anos. E as pessoas logo se encheram de grande espanto. 43 Recomendou-lhes muito que ninguém viesse saber do ocorrido, e disse para darem de comer à menina.

Mc 5

A interrupção do sermão de Jesus faz com que ele se interesse pelo drama humano. Enquanto sai, ele se atrasa a chegar, por causa de outra mulher, que sofria de hemorragia. Este texto foi suprimido porque não nos interessa neste momento. Mas é um texto de grande riqueza de detalhes e digno de uma leitura feminista da Bíblia, para notar como Jesus trata as mulheres. Voltemos à menina.
Jesus é ridicularizado por falar que a menina ainda tem chance de viver. O que teria matado aquela menina? Não sabemos, mas Jesus – como no caso anterior – ordena a imediata ação. O fato só reforça a afirmação que fizemos sobre que a vontade de Jesus, o Cristo, não é que as pessoas jovens possam estar perdendo a vida em atitudes ou fatos que os levem à cama e à morte.
Também aqui, a menina tem a ordem de levantar-se. Jesus não parece mesmo querer a juventude deitada ou prostrada. A atitude deve ser de se por de pé diante da vida, combatendo os problemas e inventando soluções novas. Como Davi. Quando Jesus retoma a leitura da Torá e dos Profetas, ele o faz de uma nova forma. A própria leitura que Jesus, o Cristo, faz da Bíblia é nova e retoma o melhor dela. As duas ressurreições retomam o “espírito” de Elias.
Passemos à atitude de Jesus com relação a outro jovem que lhe aborda: um jovem rico e com sonhos nas nuvens. Ele não tem que se preocupar com a sua própria manutenção e com a sua vida. Por isto mesmo, joga as suas preocupações para a outra vida. A vida temporária está boa, como será a vida eterna?

17 Quando Jesus se pôs de novo a caminho, alguém veio correndo, ajoelhou-se diante dele e perguntou: “Bom Mestre, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?”18 Jesus respondeu-lhe: “Por que me chamas de bom? Ninguém é bom a não ser Deus! 19 Conheces os mandamentos: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não darás testemunho falso, não prejudicarás ninguém, honra pai e mãe ”. 20 Ele disse: “Mestre, tudo isso eu tenho observado desde a minha juventude”. 21 Jesus olhou para ele com amor e disse: “Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu ; depois vem e segue-me”. 22 Mas ao ouvir isso, ele ficou triste e foi embora abatido, porque possuía muitos bens.
Mc 10
Jesus é contra a riqueza? O texto posterior explica que Jesus acredita que a riqueza sempre será um fardo para quem a tem. Porque precisa sempre se ocupar dela para manter e desenvolver o que tem. Assim, não será possível se desenvolver e crescer na fraternidade, porque a fraternidade e a solidariedade minam a riqueza que se pode ter, socializando os bens. Um rico extremamente solidário é como uma roda quadrada: um conceito contraditório de si mesmo.
Mas o texto diz também que Jesus olhou o jovem com amor. Jesus via o coração e os sonhos daquele jovem. Ele era sincero na pergunta, não colocava nela nenhuma segunda intenção. Era uma pergunta vital para ele. Por isto, Jesus só pode responder no nível da vida: Jesus propõe um projeto de vida, novo e desafiante. Algo que aquele jovem ainda não tinha: uma vida de aventura na confiança de Deus, no seu projeto e nas pessoas que viviam com ele. Aí os sonhos malogram: é fácil querer tocar as nuvens. O difícil é se elevar do chão. Dá medo, porque se perde a segurança. E é isto que Jesus propõe: o desafio de perder a segurança do dinheiro para conquistar a liberdade de quem tem projeto de vida comum. Este é o resultado do amor de Jesus por aquele jovem. À pergunta sobre a vida eterna em geral, Jesus contrapõe uma proposta de vida comum bem concreta. Esta seria a chave da felicidade que o jovem estava tanto buscando e jogando para uma outra vida. Jesus propõe uma vida outra, diferente de tudo o que ele já conhecia. Uma aventura nos braços de Deus e de seus amigos. Parece que a adrenalina foi muito forte e o jovem não agüentou enfrentar o risco de perder os medos. Os medos nos amarram e nos põem seguros. Por causa deles, não fazemos muitas coisas, ou não fazemos nada.
Vida comunitária e podre. Este era o projeto de Jesus, o Cristo. Vida solidária com os sofredores, com os pobres, com os doentes, com os aprisionados. Afinal, a boa noticia não veio para eles? (Lc. 4,16-29 apresenta o texto de Is. 61,1-2; 58,6). A vida individual ou individualista é mais segura e menos arriscada, porque alguém só tem que se preocupar consigo. E quando a vida está muito ruim, pode-se sempre por fim a ela. Esta é a causa maior para o suicídio. Quem tem um projeto de vida comunitária precisa se ocupar com tantas coisas e pessoas que não pode conceber o suicídio. Isto iria privar a vida de muitas pessoas do dom de sua vida repartida.
Não há provas e pesquisas concretas, mas será que uma parte dos números de acidentes de trânsito, envolvendo a morte de jovens, não se refere a suicídios disfarçados, fruto de uma vida vivida sem sentido? Há quem desconte nos outros a frustração da própria vida com atos de violência e há quem desconte em si mesmo. Especialistas andam cheirando este dado por baixo das estatísticas de acidentes de trânsito. O álcool é depressor de humor e – para uma pessoa já insatisfeita e depressiva – pode ajudar a tomar a coragem de acabar com a própria vida num acidente de trânsito, que apareceria nas estatísticas apenas como um acidente por imprudência. Um acidente de trânsito provoca a morte de forma rápida e – presumivelmente – sem dor. Os pais e os amigos, incluindo a namorada(o), não ficariam muito culpados com isto. Nem se precisa deixar uma carta explicando nada. Sai-se da vida de forma rápida... Para que isto aconteça, é preciso apenas ter um carro nas mãos, depois de uma festa. Os pobres têm menos esta oportunidade. Os pobres morrem mais de acidentes de trabalho e do uso de armas de fogo, incentivados pelo tráfico e distribuição de drogas.
Questão do sentido da vida não pode ser uma questão marginal. Se a vida não tem sentido, ela não merece ser vivida. Esta é a fonte de sofrimento psíquico de muitos jovens. A questão do álcool e das drogas, sejam pesadas ou leves, só mascaram a questão de fundo. As pessoas usam drogas para se sentir bem momentaneamente. Isto significa que elas não estão se sentindo bem. O que causa este desconforto? O fato de não ter sonhos e nem sentido afeta as pessoas de forma séria, mas invisível. É como uma sede invisível: o organismo precisa de água, mas o corpo não reconhece a sede que tem.
Uma sociedade consumista como a que temos possibilita uma satisfação total do desejo para um grande número de pessoas. Mas esta satisfação é apenas aparente: o humano tem sede de relacionamentos saudáveis, duradouros e solidários. Está no código genético do ser humano, sem cooperação ativa e sadia, não conseguimos manter a espécie viva sobre o planeta Terra. Ao satisfazer os desejos superficiais o dinheiro enterra o desejo mais vital em camadas profundas de nossa psique. O que não quer dizer que ele não esteja morto ou que ele não continue atuando de forma ativa em nossa vida. Só que agora, de forma a produzir neurose ou sofrimento. O mesmo sofrimento sentido como tristeza pelo jovem rico, que – sabendo que a proposta de Jesus era mais radical, mas mais realizadora – não conseguiu reunir forças para deixar tudo e seguir o mestre, mesmo a custo de viver uma vida sem sentido e sem esperança.
Quero trabalhar um último tema na relação de Jesus com os seus contemporâneos (ou pelo menos o que sabemos sobre ele através do testemunho dos Evangelhos). É a indignação ética. Nossos discursos eclesiásticos sobre Jesus, o Cristo, fazem crer que sempre estável e pacifico, distorcendo em parte o projeto de Jesus, o Cristo. Ele também tinha momentos de raiva e de indignação, como no caso da expulsão dos vendedores do Templo de Jerusalém. O texto vai abaixo.
13 Estava próxima a Páscoa dos judeus. Jesus subiu a Jerusalém 14 e encontrou no Templo vendedores de bois, de ovelhas e pombas e os cambistas sentados. 15 Fez um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, com as ovelhas e os bois; esparramou no chão o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas. 16 Aos que vendiam as pombas, disse: “Tirai daqui tudo isso e não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio”. 17 Lembraram-se os discípulos de que está escrito: O zelo de tua casa me consome.
18 Os judeus tomaram a palavra e lhe perguntaram: “Que sinal nos dás para fazeres isto?”
19 Jesus respondeu: “Destruí este Santuário e em três dias eu o levantarei”. 20 Então os judeus disseram: “Quarenta e seis anos levou a construção deste Santuário e tu vais levantá-lo em três dias?”21 Mas ele falava do santuário de seu corpo. 22 Quando ressuscitou dos mortos, os discípulos se lembraram do que ele havia dito e creram na Escritura e na palavra de Jesus. 23 Enquanto estava em Jerusalém para a festa da Páscoa, muitos creram em seu nome ao verem os sinais que fazia.
Jo. 2

Este texto (como tantos outros) não tem unanimidade pelos exegetas. Alguns autores o colocam no inicio do ministério, outros no final. Não se sabe ao certo se a purificação do templo foi o gesto profético que pode dar o programa de pregação do novo profeta ou se ele foi a causa do desfecho final (a condenação à cruz), motivo para a sua condenação pelo povo de Jerusalém. Um povo ameaçado em seus empregos pode ser facilmente manipulado e convencido da necessidade da eliminação de uma ameaça.
A purificação precisava ser feita: a vida religiosa estava demasiada unida à vida política e econômica. O Templo era um lugar de dominação política (ficava ao lado da fortaleza Antonia, construída e administrada como sede do poder dominador), funcionava como banco (todas as ofertas em dinheiro ou em animais só eram aceitas depois que pagas em moeda do Templo) e como mercado (as ovelhas e bois oferecidos em sacrifícios só eram consideradas puras as que eram vendidas pelos empregados dos grandes sacerdotes, também grandes mercadores). O lugar não favorecia os pobres e nem a oração de quem quer que seja. A religião estava instrumentalizada como no tempo da monarquia, com reis e sacerdotes corruptos.
Os profetas lutaram e profetizaram contra a monarquia corrupta e arrecadadora de impostos de Israel. Jesus se insere no mesmo viés. A religião precisa ser fonte de justiça e de direito. Direito e justiça que favoreça os pobres. Porque – quando os pobres são favorecidos – toda a sociedade é favorecida, mas o inverso não é verdadeiro. A indignação e o ato violento de Jesus, o Cristo, se insere na mesma tradição dos profetas. Não estamos tratando aqui de uma violência gratuita ou auto-destrutiva, mas de uma violência positiva e combativa. Uma violência purificadora e rebelde.
Jesus era jovem ainda quando morreu. E é característica do jovem ter ideais e se pautar por eles. O processo de envelhecimento nos deixa cínicos, no pior sentido da palavra. A violência aqui relatada nos mostra que:
- Jesus não era nenhum mestre zen-budista, muito pelo contrário, era mais rebelde do que o desejado por alguns (herodianos, saduceus e grandes sacerdotes);
- Jesus e seu bando podiam ser perigosos para a estabilidade da religião dominada pelos ricos e opressores políticos (romanos).
Ao usar um recurso violento para a purificação do Templo, temos que considerar qual seria a outra possibilidade. Se Jesus fosse calmamente e conversasse com os cambistas e vendedores ele teria algum sucesso? Acho que a reposta é não.
A indignação ética é colocada por Jesus como uma forma de trabalho, geradora de forças para a obtenção de um objetivo. Jesus, o Cristo, não está na doutrina de que os fins justificam os meios de Maquiavel, mas sabe que é preciso de mais do que um discurso bem elaborado para mudar alguma coisa. É preciso que o discurso de mudança acompanhe uma prática de mudança. Sem esta união de discurso e prática, nada muda. E como dizem os franceses: quanto mais se muda, menos se muda. É a indignação ética que faz com que se colem o discurso e a prática. Sem ela, cai-se no fatalismo de que as coisas não mudam, porque sempre foi assim. Desde que existe humanidade, existe dominação e exploração, mas isto – com certeza – não é a vontade de Deus. Muito pelo contrário: a vontade de Deus é que o homem seja solidário e viva bem. Foi isto que Jesus, o Cristo, nos mostrou e nos revelou. Então, a indignação ética é o que nos move a ver que isto está errado. Que as coisas se põem de cabeça para baixo e que é necessário consertar isto. Cada geração tem a incumbência de consertar e arrumar as coisas para que a sociedade possa servir melhor a vida humana e não o contrário. É esta indignação ética que precisamos desenvolver na juventude de hoje.

4. AMARRANDO AS PONTAS

É preciso que se perceba que Deus não quer o sacrifício dos jovens ou dos homens. Abraão estava errado em sua religião, mesmo que ele fosse um homem de grande fé. Havia uma distorção no seu foco. E o grande milagre foi a correção que Javé operou em sua vida. Este processo foi de uma profunda conversão para Abraão. E é preciso que se saiba também que a vontade de Deus não é a dominação, mas a solidariedade entre a sociedade. São os deuses que exigem sacrifícios humanos, o Deus libertador exige que os humanos não morram, mas que vivam e façam viver. (Dt. 30,16)
A juventude sofre de uma violência simbólica, que não é menor do que a violência física. É preciso libertar a juventude deste condicionamento, mostrando a ela que o mundo adulto tem um interesse oculto em transformar o jovem em sacrifício de imolação aos deuses atuais. E eles são muitos. A atual sociedade capitalista é idolátrica e requer a morte de muitos para a vida de poucos. É preciso semear este tipo de indignação ética, mostrando aos jovens que o projeto de Jesus tem muito mais a ver com a sua vida do que ele pensa. Jesus, o Cristo, viveu e morreu em outra época, mas não está superado. Pelo contrário, o que está superado e rançoso é um tipo de visão e de discurso sobre ele. Um tipo de discurso que apresenta Jesus como “bom moço”, quando ele nunca foi isto. Este discurso, os jovens percebem que não serve para os tempos atuais. Com razão, porque ele é mistificador e fonte de domesticação dos jovens de todos os tempos. Bom mesmo é ler os evangelhos a partir da ótica certa: Boa Nova para os pobres.
A primeira coisa é perguntar para a juventude sobre a sua própria vida para que ela mesma seja protagonista de sua história. Sem isto, caímos na dominação adulto – jovem, que é do sistema que estamos (fazer PARA OS JOVENS). É preciso que eles sejam os autores de sua história. É o jovem que deve ser apóstolo de outro jovem, tanto na Igreja como na sociedade.
O nosso trabalho – enquanto teólogo e crente – é disponibilizar as ferramentas teórico-críticas para que eles possam construir um cristianismo que seja mais agente de transformação, pessoal e comunitária. Nada de armaduras e ferramentas de adultos para o combate. É preciso ser criativo, o que equivale a pensar de forma nova diante dos problemas. E se colocar de pé diante de outros jovens e dos adultos. Quando isto acontece, ele descobre um Jesus muito mais proclamador do Reino; um Jesus revolucionário e que não se vende fácil. Um Jesus que tem ideal e que chama a todos para que o sigam em seu projeto. Enfim, um Jesus que é um jovem pregador e que tem motivo para lutar e ser fiel ao ideal, mesmo que custe a cruz. Uma cruz que não é caminho de suicídio, mas caminho de ressurreição.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

BÍBLIA SAGRADA – trad. feita a partir dos textos originais. Petrópolis: Vozes & Seafox engenharia de software, 1996.
BENTO XVI - A alegria da fé e a educação das novas gerações - discurso aos participantes da assembléia eclesial da diocese de Roma. CIDADE DO VATICANO, quinta-feira, 22 de junho de 2006. Disponível na Internet: www.zenit.org.it , 19 de setembro de 2006.
JOÃO PAULO II – Exortação Apostólica CHRISTIFIDELIS LAICI. São Paulo: Paulinas, 1989.
INSTITUTO DE PASTORAL DE JUVENTUDE – O jovem na bíblia: 20 roteiros para grupos. Porto Alegre: Evangraf, 1992.
QUAPPER, K. D. & SOLANO, B. T. – Rotundos invivibles: ser jóvenes em sociedades adultocéntricas. La Habana: Ed. Caminos, 2003 (Cuadernos Teológicos. Pastoral 4)

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