1. Harry Potter: uma história que .encanta.
Quem é o bruxo adolescente Harry Potter, que fez com que sua criadora, J.K. Rowling,
escrevesse sete livros contando sua saga? Qual o segredo do sucesso dos livros e,
principalmente, dos filmes sobre Harry Potter, que acumulam filas de crianças e
adolescentes que por horas esperam a abertura das livrarias para comprar o lançamento, ou
nos cinemas aguardando mais uma estréia cinematográfica? Que .poder mágico. existe
nesse personagem que fez até um cardeal da magnitude de Ratzinger se manifestar?
Iniciemos pela primeira questão: Quem é Harry Potter? É um bruxo adolescente, órfão, que
estuda em uma escola que o prepara para exercer suas habilidades em seu contexto
específico, .vida de bruxo.. Contudo, ele não é um bruxo qualquer, sua especialidade é
voltada para o Bem, e ele mesmo é um vitorioso em relação a isso, uma vez que escapou
da morte após um ataque praticado pelo representante do Mal, o personagem Lord
Voldemort, que matou seus pais, e cuja missão de Harry é vencê-lo, seja por vingança, ou
propriamente para eliminar o Mal do mundo.
Certamente que apenas o que foi apresentado do enredo principal da história de Harry
Potter não seria suficiente para que, de acordo com a editora Rocco que publica os livros da
série: .Os cinco primeiros volumes criados pela escritora venderam 250 milhões de
exemplares em todo o mundo, 2 milhões só no Brasil, e foram traduzidos para 62 idiomas2..
O número de pessoas, crianças, adolescentes e adultos que assistiram aos quatro filmes já
apresentados no Brasil, com certeza supera em muito os números relativos aos leitores,
uma vez que no cinema a história do jovem mago se torna acessível a um público que não
tem acesso aos livros, o que amplia consideravelmente a aproximação de todos para com
esse personagem.
Qual será a fórmula mágica utilizada por Rowling? Na realidade, como veremos a seguir, a
autora apenas se apropria de um universo que tem ressonância em um público jovem que
utiliza referenciais de sua época para elaborar suas representações simbólicas e, isto, a
partir de um conjunto de representações que longe estão de serem inovadoras.
De acordo com a reportagem publicada na revista mensal Aventuras na História, em sua
edição de novembro de 2005, sob o título Mago Novo, Magias Antigas, a autora teria partido
de uma vasta pesquisa histórica, que inclui conhecimento de mitos e outras representações
simbólicas que acompanham o imaginário de várias sociedades em vários tempos, e através
de uma, digamos assim, bricolage, ela teria transformado esses símbolos criando uma nova
realidade que contextualiza a história de Harry Potter.
Desta forma, os segredos da alquimia, astrologia e cabala que Harry aprende em Hogwart,
escola para bruxos, teria sido inspirada nas práticas difundidas na cidade de Toledo, na
Espanha, onde .se aprendiam as chamadas ciências ocultas e buscavam a pedra filosofal..
Esta aprendizagem, conforme nos diz a reportagem, teria tido como um dos seus mais
ilustres aprendizes o suíço Paracelso (fim do século XV e início do século XVI), conhecido
por nós como um dos fundadores da química e da medicina modernas. Em seu livro
Bruxaria e História: as Práticas Mágicas no Ocidente Cristão, o historiador Carlos Roberto
Figueiredo Nogueira demonstra a importância cultural e social dos magos nesse período,
que inclusive pertenciam à nobreza, e juntamente com as feiticeiras, que embora não
necessariamente pertencessem a essa categoria social, eram respeitadas por seus
conhecimentos do uso das ervas e, portanto, com a cura de doenças e coisas ligadas às
mais variadas superstições. Não há dúvidas de que tanto os magos como as feiticeiras eram
figuras que, em seu contexto, representavam o Bem.
O sentido do Mal com relação aos feitiços aprendidos por Harry, é dado com a introdução de
outro elemento da história: as bruxas, que diferentemente das feiticeiras tem suas origens
na Idade Moderna a partir da intensificação do processo que estrutura concretamente a
Santa Inquisição levado a frente pela Igreja Católica em um contexto de crise que ameaçava
sua hegemonia. As bruxas seriam assim associadas à figura do diabo - elemento que
também é introduzido com mais vigor no mesmo período - por isso, queimadas na fogueira
da Inquisição. Esta visão associada ao Mal teria no século XIX adquirido novos elementos
através das novas formas de esoterismo que surgem acompanhando uma das
transformações provocada pelo processo de secularização que há muito ameaçava a
hegemonia das religiões tradicionais.
No dizer do historiador Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, embora a pesquisa histórica
tenha sido ampla, na verdade o resultado seria: .Harry é um jovem mago, mas usa a
vassoura das bruxas e aprende poções de feiticeiras.. Este é um exemplo daquilo que
denominamos acima de bricolage, onde os vários elementos se interligam e acabam por
produzir um novo resultado.
Além desses elementos apontados, outros ainda produzem o encantamento na construção
da aventura de Harry Potter. Lendas antigas, como a do alquimista Nicolau Flamel do século
XIV; palavras mágicas como .abracadabra., cuja origem segundo o escritor David Colbert
viria do aramaico abhadda kedhabra (.desapareça deste mundo.), usada para curar doenças que em Harry Potter se transforma no maior feitiço do Mal; o uso da mandrágora,planta que foi muito utilizada na Antiguidade por suas propriedades calmantes e
analgésicas, e na Idade Média, para fazer poções do amor; animais simbólicos como os
gatos, ratos, sapos e corujas além de outros de formas fantásticas (centauros, sereias e
dragões, por exemplo) aparecem nas histórias, assim como a transformação de humanos
em animais em condições especificas (animago, no universo criado pela autora), relembram
os mitos que se utilizam não só de animais, como também dessas transformações, como,
por exemplo, Proteu que na mitologia grega se transformava em vários animais.
Não são apenas os elementos mágicos e sobrenaturais que dão sabor as histórias criadas
por Rowling, mas há elementos retirados da psicanálise que podem nos remeter a conceitos
essenciais como os arquétipos de Jung. Neste caso, algumas comparações com heróis tais
como Ulisses, rei Arthur, e até mesmo Luke Skywalder, assim como os caminhos da
.jornada do herói. construídos por Joseph Campbell para descrever o modelo do arquétipo
do herói, são pontuados na reportagem que tenta demonstrar o amálgama entre o velho e o
novo.
Retornemos agora a indagação sobre o .poder mágico. das histórias de Harry Potter que
levaram até a uma manifestação da Igreja Católica na figura do então cardeal Ratzinger. A
manifestação a que nos referimos foi, como dissemos, uma forma de agradecer e
parabenizar a socióloga católica Gabriele Kuby, que em seu livro Harry Potter, o Bem ou o
Mal diz que .as histórias do jovem mago corrompem os corações dos jovens e ferem sua
relação com Deus desde a infância., conforme as palavras transcritas na reportagem em
questão. O cardeal teria lhe enviado uma carta com o seguinte teor: .Obrigado por seu livro
instrutivo. É bom que você esclareça sobre Harry Potter, já que suas sutis seduções têm um
profundo impacto na fé, sem que se perceba, e desagregam o cristianismo em seu
espírito.3. É importante acrescentar que a mensagem de apoio a análise de Kuby não se
restringiu a do cardeal Ratzinger, mas contou com manifestações na mesma linha de crítica
em revistas religiosas como Eclésia (evangélica) e Catolicismo (editada pela organização
Tradição Família e Propriedade).
O que tentaremos demonstrar é como a análise feita pelo então cardeal desvincula-se da
realidade contemporânea, principalmente quando essa realidade se coloca a partir de duas
categorias tão importantes para nosso contexto: a adolescência e a mídia. Também é
importante ressaltar que essa análise, desvinculada da realidade atual, está longe de ser
ingênua, mas se constitui em uma forma de manter hegemonia nas representações
simbólicas no campo religioso.